17 nov Pais nocivos
Tenho pena de algumas crianças. Digo isso com uma profunda dor no coração. Tenho pena de várias crianças. Aliás, de muitas crianças.
Tenho pena de crianças que conheço; doutras somente ouvi falar. Tenho pena não de seus déficits de atenção, de seu autismo, de sua hiperatividade, ou de sua incapacidade de ter compostura. Tenho pena porque suas famílias não lhes respeitam ou, pior, resistem em aceitá-las como são. Juram amá-las, mas lhes negam a possibilidade de um diagnóstico ou tratamento. Reconhecem, claro, que há algo, digamos, fora dos padrões naquele filho. E pedem, clamam, imploram, um pouco mais de paciência com seus rebentos. Ignoram, pois, que inadequações fora de controle irritam, perturbam, incomodam, machucam até muita gente – a começar pelos próprios. E, então, ataques de fúria ou rompantes nervosos ou incompreensões são traduzidos, pelo público ao redor, como pitis, faniquitos, mimimis e falta de educação de filhos mimados e sem limites. É justo pensarem isso dessas crianças? Uma coisa é certa: estamos falando de pais nocivos.
Nesse momento, preciso fazer uma pausa, pois o leitor novo por aqui pode achar que sou dessas que saem julgando as crianças e condenando seus pais, sem saber a história de vida daquela família. Já aviso: não sou dessas. Vivo a inclusão. Respiro inclusão. Conheço o lado A, o B e até o Z desta vida. E essa negação dos pais é uma das piores facetas da inclusão (ou seria da exclusão?). E, portanto, também sei identificar quando estou de frente a uma família que enxerga a condição dos filhos, mas lhe nega tratamento, seja por vergonha de si ou do outro, e, de quebra, educa os filhos muito mal. Ah, sim, o fato de ter um filho com alguma deficiência não traz atestado de bons pais, não. A geração de crianças e adolescentes que temos aí não sabe ouvir não, é lançada a eletrônicos, é carente dos pais e mandam em casa. E, parte desses filhos está dentro universo de pessoas com deficiência.
Diante do comportamento dos filhos, interpretado socialmente como inadequado, desculpam-se trazendo diagnósticos quase infantis que atestam a deficiência… das famílias. Dá vontade de tomar a guarda dessas crianças. Já ouvi coisas como ele tem “uma resistência à frustração”, ou “certa inabilidade social”. Já ouvi de uma mãe que não conseguia conter o filho após perder uma partida de damas que ele tinha “uma pequena dificuldade em seguir as regras”. Já vi crianças gritarem com adultos e o pai se virar e sentenciar que o filho tinha um problema em reconhecer autoridade”. Já arregalei os olhos com as manias alimentares, nada saudáveis, mas sempre justificáveis. Já vi uma menina xingar um colega e se debater no chão porque ele não queria lhe emprestar seu brinquedo e a mãe bradar aos sete ventos que “ninguém entende a sua filha”. Oh, céus!
E, aí, ninguém mesmo: da portaria do prédio à escola, da professora ao salva-vidas da piscina, dos colegas de turma aos amiguinhos da capoeira. Ninguém entende mesmo. Ora, ora, nem mesmo a própria família. Sem aceitar que um filho tem uma questão que requer tratamento, os pais cometem um erro cruel com seus filhos: sabotam seus cuidados. Não levam seus filhos aos médicos ou, quando os levam, apenas o fazem para bater ponto. Não seguem as orientações dos profissionais que estão ali para tratar do filho. Aliás, muitos têm uma agenda cheia de psicólogos, psicopedagogos, fonoaudiólogos etc etc. Tem famílias que aparecem nos consultórios dos papas da psiquiatria infantil, mas esquecem de comprar o remédio tarja preta do filho ou insistem em manter na escola bilíngue que o médico mandou tirar há três anos. Ouvem exatamente aquilo que querem ouvir – ou que dão conta de ouvir. Ah, quer irritar um pai nocivo? Pergunte se sua criança é aluno em situação de inclusão na escola. Chegue para trás nessa hora, pois a ira desse parente pode lhe custar um dente.Então, esse pai ou essa mãe que acha que o filho é como qualquer um, salvo quando contrariado, salvo quando com fome, salvo com soninho, salvo quando…, não percebe fatos como a solidão na escola, a impaciência de um professor, a inabilidade de uma tia, babá ou empregada, o cansaço que gera ao redor. É a criança que traz terremotos, mas ela é absolutamente igual aos demais da sua geração. Então, não é do nada que um adolescente vai ser expulso da escola, do curso de inglês, da aula de judô. Também não é do nada que as crianças da turma não queiram sua companhia na hora do recreio. Nada é do nada. Um risco que a família não viu? Ou não quis ver?Tenho pena de algumas crianças, sim. E tenho pena de seus pais. Nocivos a seus filhos e, sem perceber, a si próprios.