O apito do desassossego

O apito do desassossego.

O apito do desassossego

Ao sair de casa Amália corre para pegar um apito e, ainda no elevador, lança o brinquedo no pescoço de Joaquim. “Agora, sim, podemos ir”, suspira aliviada. “Exagerada”, pensa Sérgio que está mais preocupado com o Uber cancelar a corrida até o aeroporto. Ela faz que nem liga, pois o medo de perder o filho é maior do que qualquer olhar de reprovação do marido. E dos outros.
No Uber, ela ensina ao menino. “Se se perder, apita”. E fica repetindo como um mantra até o garoto jurar que entendeu todo o mecanismo. Risos abafados no carro. O mais velho já avisa que, dessa maneira, Joaquim vai se perder. Amália dá de ombros. Porém, já no carro prrrrriiii, prrrrrriii… “Para, menino”. “Só estou testando, mãe”. E o motorista parece não ter gostado.
Desce do Uber. Pega mala. Corre para fazer check in. E Joaquim, agarrado no apito, faz cara de danado. Hora do embarque. Amália segura o mais velho. Sérgio leva Joaquim que sorrateiramente vai se deixando ficar para trás. Então, como numa coreografia ensaiada, Joaquim dá um lento rodopio e, como se não encontrasse aqueles de quem , a-hã, se perdera, respira fundo e, com toda a força que seu pulmão permitia, apita. PRRRRRRRRRRRRRRRRRIIIIIIIIII! A julgar pelo estridente som do brinquedo, o menino estava não apenas perdido, mas desesperado. Ao redor, uns pularam de susto; outros estavam visivelmente contrariados. E havia uma minoria que ria do moleque.
Amália, vermelha, foi pegar o menino e, se tivesse escutado os conselhos do marido, teria lhe tirado o apito naquela mesma hora. Mas é que Amália, além de protetora e medrosa, é teimosa. O sopro mais alto, dessa vez, foi dentro do avião. PRRRRRRRRRRRRRRRRRIIIIIIIIII! E não houve explicação convincente de que o menino estava perdido. Perdeu o apito, arrancado do pescoço pelo pai, não sem os apelos da mãe.
Apito confiscado, Amália demonstra à família já ter um plano B ao pendurar no próprio pescoço o apito. “Isso está ridículo, Amália”, repreendia o marido. Ela queria tentar ao menos. Ou melhor: Amália não queria se arriscar. O problema era que, para o apito ser sonado, Joaquim tinha que se perder. Então, Joaquim se perdia. E dá-lhes prrrrrrrrrri, prrrrrrrrrri, prrrrrrrrrri.
Sérgio já estava mais do que incomodado. E, num momento de distração de Amália, sumiu com o cobiçado objeto. Sem o bendito (ou maldito, vai saber), Amália estava tensa. Então, lembrou de ter trazido os relógios que se unem por um fio que estica e trava – uma algema disfarçada para crianças. Mas Joaquim foi categórico:“Nem a pau”.
Desolada, Amália era só medo. “Eu vou perder meu filho no meio da multidão”. Passou pela cabeça fazer uma camiseta com o telefone, mas isso já não era mais possível. Lembrou das pulseirinhas de identificação trazidas na mala, entretanto, novamente, o menino se recusava a usá-las. Não havia mais planos ou ideias de salvação.
Sérgio também estava preocupado – de uma forma diferente da de Amália. Então, ele começou a assobiar o assobio de sempre. Uma melodia que ele inventou para avisar a família que estava na área. Se os garotos se afastassem, assobiava e, então, eles iam em sua direção. Amália também deu outra dica: em caso de se sentirem perdidos, que parassem. “Eu sei que é difícil, mas você vai ter de se esforçar para isso, combinado?” Sem apito, Amália grudava no marido e, caso se afastasse, Sergio já sabia como trazer a mulher perdida de volta. Serviu para todo mundo o canto de Sérgio.
O estresse da família sumiu junto com o apito. As crianças – as duas e não somente Joaquim – se sentiam seguras com a solução do pai e Amália, bem, Amália chegou a concluir que precisa tratar de suas neuroses… No fim da viagem, não era somente Sérgio que assobiava – Joaquim também, que diante de qualquer sinal de intranquilidade, soprava pela boca miúda o som marcante de seu pai.
Saldo final da viagem: zero desaparecido.
Moral da história: precisamos encontrar o caminho para que todos, todos, todos, todos, todos mesmo cumpram o objetivo final de um, digamos, desafio. Nesse caso, era viajar sem deixar os filhos para trás. A mãe estava certa de que o caçula, com alguma questão física ou emocional, poderia se perder na viagem. Tentou o apito com ele, o apito com ela, pensou em fazer camisa, os relógios, as pulseirinhas. Ou seja: tentou, errou, tentou, errou. A solução, mais simples do que se cogitara, veio por quem também conhece a criança. Conhece e confia. No fim das contas, o assobio do pai cumpriu o papel de garantir a segurança do filho, juntamente com a sua capacidade de ficar parado onde está na hora que sentisse perdido –  para ele, um esforço e um passo para o crescimento e a autonomia.
Aliás, a solução serviu para toda a família. De tão preocupada com Joaquim, Amália esqueceu do mais velho que, como qualquer criança, também pode se perder em lugares abertos ou de multidão. Com o assobio do pai, todos ficaram sãos e salvos.
Inclusão passa por isso. Errar, tentar, envolver e especialmente acreditar. Já nem importa qual a questão que se tem. Qual a deficiência de Joaquim? O que ele tem que preocupava tanto a mãe? Isso importa mesmo? Nosso erro, muitas vezes, está aí. Olhamos para a deficiência e esquecemos de enxergar o que cada um é capaz de fazer. Nem sempre é fácil, lógico. Às vezes, basta assobiar.

Fabiana Ribeiro
fabiana.ribeiro@paratodos.net.br


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