Faca na mochila: lealdade ou intolerância?

Faca na mochila: lealdade ou intolerância?

Faca na mochila. Isso é a arma da lealdade ou da intolerância? Como explicar o episódio que envolveu quatro crianças, de 8 e 9 anos, do Colégio Cruzeiro – escola do Rio de Janeiro que fica, no quesito Enem, atrás apenas do São Bento? Num desentendimento, um aluno teria se queixado com dois amigos de um terceiro, tendo expressado o desejo de se livrar do desafeto. Dores tomadas, facas de cozinha nas respectivas bolsas para o que seria uma emboscada perfeita. Que, no entanto, não se concluiu porque o reclamante teria se dado conta das consequências de seu desejo e, arrependido, fora contar o plano para aquele que seria a vítima de seus fiéis escudeiros. As informações são de reportagem publicada no site do Globo.
Estamos falando de crianças pequenas, de 8 e 9 anos de idade, filhos de uma tradicional classe média carioca. E não de meninos pobres, de escolas públicas, a quem muitos, pelo mesmo incidente, pregariam a redução da maioridade. Devem curtir Mario Bros ou Sonic, mergulhar na praia ou na piscina do clube, assistir a Ben10, ir ao cinema, viajar para Búzios ou Disney, jogar Minecraft, fugir para a cama da mamãe. Devem fazer inglês-judô-natação-futebol. E certamente devem adorar estar entre amigos. Nada muito diferente dos meus e do seus filhos.
Mas, então, o que leva essas crianças tão típicas e tão comuns do Leme ao Pontal a levar facas para a escola? Lealdade ou intolerância? Lealdade ou intolerância? Lealdade ou intolerância? Lealdade aos amigos. Intolerância àquilo que é diferente de mim, do meu grupo, do que eu penso. Tudo isso somado a uma boa dose de falta de limite.
Nem desconfio da razão para que uma criança queira se livrar de uma outra. Talvez uma rixa, uma brincadeira inadequada, uma gozação mal recebida, uma discordância… Tão pouco… Achar que isso é efeito de videogame, filmes do Homem Aranha ou da novela que viram quando passavam pela sala é achar que essas crianças estariam numa imersão completa no abstrato sem qualquer supervisão moral, mesmo que minimamente. Mas, de toda forma, alguns valores estariam equivocados, mesmo que minimamente.
O que leva uma criança a defender a outra passa, sim, pelo sentimento forte de lealdade que advém de fortes laços de amizade. E também de identidade. Até aí tudo muito bonito. Mas (a intenção de) ferir um colega de classe, com uma faca, tem muito a ver também com intolerância – a um universo sem fim de coisas que nem ouso enumerá-las. Já não importa mais o que a suposta possível vítima teria feito ou agido ou seja: lidar com o diferente se mostrou impossível para o quarteto. Não há motivo, ainda mais quando se tem 8 ou 9 anos, que justifique o desejo de machucar, ou mesmo eliminar, uma outra pessoa. Nem mesmo um bullying ou uma zoação ou uma desavença tão corriqueiras entre crianças dessa idade.
Estamos, não somente no Cruzeiro, mas em tantas outras escolas, com um sério problema de intolerância ao outro. Falhamos – pais e escolas – na hora de ensinar às nossas crianças a respeitar o colega que é diferente do próprio reflexo no espelho, assim como suas opiniões, seu jeito de ser e de viver, suas escolhas.  Pulamos a aula diversidade, da ética das relações e do respeito. E, assim, formamos jovens adultos cada vez mais egoístas, competitivos, arraigados a seus umbigos e totalmente incapazes de aceitar o outro do jeito que é. Que não sabem seguir regras, porque veem seus pais burlando sistemática e diariamente de leis de trânsito a normas do condomínio. Que não recebem “não” na hora certa, que não têm limites – e toda aquela velha retórica que faz parte do blá blá blá da culpa dos pais que trabalham de mais, mas que já não é mistério, nem desculpa,  para ninguém.
Não é hora de culpar a criança A, B, C ou D. Tampouco é momento para passar a mão na cabecinha delas. Afinal, levar uma faca na mochila precisa ter consequências. É grave. Deixar esse incidente a cargo do tempo, do esquecimento, do crescimento e da maturidade, vai dar uma bela lição de impunidade. Vai ser mais uma manifestação de que não há limites para o que se quer e que a violência é a saída para os problemas. É preciso tocar no assunto, conversar com as crianças, com os alunos, com os pais. E entender, especificamente, o que se passa na cabecinha dessas quatro crianças — que certamente têm a ver com lealdade e muita, muita, muita intolerância.

Fabiana Ribeiro
fabiana.ribeiro@paratodos.net.br


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