Eu estou curado!

Foto mostra um muro que tem como imagem dois olhos e à frente dele uma pessoa andando

Eu estou curado!

Durante muito tempo da minha vida procurei não olhar nos olhos da minha deficiência visual. Eu, familiares e amigos vivíamos num “faz de conta” em que fingíamos que não havia nada de diferente comigo. Obviamente uma quimera.

Ainda assim, como os meus pais são excelentes, buscaram me fazer ter muita autonomia e a encarar tudo de peito aberto – o que demorei um pouco para aprender. Lembro que muita gente achava que eu devia ficar escondido em casa como um peixinho no aquário. Ufa, meus pais não fizeram isso! Trataram-me como uma “criança normal”.
Mas, para os meus pais, eu seria mais feliz se ficasse curado e fosse “normal”. Isso me trouxe algumas sensações péssimas e uma meia dúzia de histórias engraçadas. Quando eu era criança não entendia muito bem tudo aquilo, mas sabia que eu parecia ter “algo errado”.
Quando se tem alguma deficiência, todos os demais querem encontrar uma “cura” a todo custo. Eles sempre conhecem “alguém que pode curar a doença” ou, pior, “conhecem um remedinho que é batata… receita da vovó”. Nem vou mencionar aqui que quase todo mundo pergunta: “tem uma cirurgia que cure?” ou “uns óculos não resolvem?” ou “já consultou outros médicos ou tratamentos no exterior?”.
Eu respeito as pessoas que têm fé no plano transcendental e que seus tratamentos possam me fazer enxergar normalmente, mas me dou o direito de não gostar muito desse tipo de coisa. Também deixarei de lado os “pastores e missionários” que me param na rua dizendo que esse “defeito” é “falta de jesus”. Deficiência é pecado?
Os pais, avós irmãos e amigos de quem tem deficiência não fazem ideia da “tortura” que é para a maioria de nós – ainda mais quando crianças – ir semanalmente a curandeiros de plantão. Ainda tenho muito vivo todo o sofrimento que vivi. Eu e meus pais íamos sempre cheios de esperanças e, ao fim de tudo, era só um acumulo de decepções e desencantos. Ainda trago na memória a sensação de ser constantemente “preterido” por Deus, pois tanta gente conseguia o que queria e eu, não.
Muitos foram os métodos e tratamentos para curar minha baixa visão. Já tomei suco de couve em jejum, chá com sabor de sabonete. E ainda o tradicional banho de arruda ou um galo preto passando pelo meu corpo. A gota d’água foi quando eu tinha uns vinte anos e cabelos até a altura dos ombros com lindos cachinhos. O tratamento consistia em uma compressa colocada nos olhos cujos ingredientes principais eram ovos de galinha e argila derretida em chá de camomila. Eu fiz isso durante um tempo – contrariado. Até que um dia a tal mistura vazou e encharcou meu lindo cabelo. Resultado: fiquei fedendo a ovo por umas duas semanas (nem banho adiantou). Essa foi uma parte engraçada de todo o drama que vivia, mas que me fez botar um ponto final naquela maluquice toda.
Pouco tempo depois, minha vida tomou outros rumos e eu passei por uma série de discriminações e preconceitos. Depois de momentos bem difíceis, em que eu achava que deveria mesmo desistir de tudo, comecei a refletir e pensar sobre o que eu poderia fazer para me reconstruir e fazer a minha parte para que ninguém mais passasse o que eu passei. Descobri o amor pela vida acadêmica e que era a docência o que eu queria para o resto da vida. E mais que isso, ser sempre um pesquisador-ativista.
Como eu digo, muitas vezes, se eu tenho uma carreira em ascensão e de relativo sucesso como acadêmico e como áudio descritor consultor, devo isso a ela. Se tive a chance de ter um apartamento, de ter um casamento tão bom, de viajar, de ter amigos queridos que eu amo tanto, foi por conta do que a baixa visão me proporcionou.
Nem sempre foi assim, mas atualmente trato a deficiência como um dom – tomando emprestado o conceito de Borges – adquirido e construído. Não me sinto mais defeituoso, unicamente caracterizado como alguém que tem olhos que não enxergam bem. Não me vejo limitado ou amarrado ao fracasso, mas sim livre para um mundo de possibilidades. Os problemas e as dificuldades existem. Mas quem não os tem?

Depois de tanto tempo, acabei descobrindo que não foi nenhum curandeiro, pastor, padre, nenhum chá, infusão ou compressa de argila com ovo de galinha que fez esse “milagre”. Sim, EU ESTOU CURADO! Libertei-me das correntes dos estereótipos, estigmas e baixas expectativas. Afinal, nem a baixa visão ou o céu são meus limites. A baixa visão não foi o meu fim, mas um belo e venturoso começo…

 

*Felipe Mianes é doutorando em Educação (Bolsista CNPq) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Está fazendo doutorado sanduíche em Barcelona, estudando sobre audiodescrição.

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