“Eu até falei com ele”

“Eu até falei com ele”

Minha casa vive sempre cheia de crianças. Além dos meus três filhos, sempre tem amigos da escola na sala, primos pelos quartos, sobrinhos pelos corredores. Enfim, muitos encontros. Num desses dias, havia nove crianças sentadas na sala ao lado. De onde estava, ouvi a seguinte conversa:
– Meu irmão não parece ter oito anos. Parece bem menos – disse uma das crianças.
Era óbvio que o tom era de implicância. E logo outro menino entendeu que estava aberta a sessão de implicâncias com irmãos mais novos e continuou:
– Minha irmã está namorando.
E fez uma pausa. Não uma vírgula, mas um ponto e vírgula. E complementou:
– E ele tem síndrome de Down.
Será que eu poderia ver um preconceito nesta fala? Era apenas um comentário? Uma colocação sobre uma característica? Ou uma fala para abrir o caminho para a zoação? Difícil afirmar. Pode ser muito tênue a linha entre a ingenuidade e a esperteza. Mas, para mim, era com certeza uma implicância com sua irmã mais nova: revelar um segredo dela.
Entretanto, ela não pareceu se importar. De certa forma, pareceu até se orgulhar de já ter um namorado aos nove anos. Mas a conversa continuou. E o menino que iniciara o papo comentou:
– Eu também conheço um menino com síndrome de Down. E vocês sabem de uma coisa? Eu até falei com ele.
Alguém entrou oferecendo sobremesa e a conversa terminou.
Só que aquela frase continuou ecoando na minha cabeça. “Eu até falei com ele” Até quando vamos ouvir frases como esta? Até quando?

 

Ciça Melo
cica.melo@paratodos.net.br


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