E o diabo diz: “obrigado, Maria Filó”

Racismo está fora de moda.

E o diabo diz: “obrigado, Maria Filó”

O Brazil-senzala virou estampa da Maria Filó – que, diante da reação dos consumidores nas redes sociais, tirou a cena da escravidão de sua coleção. Menos mal. Afinal, não é aceitável sair por aí vestindo uma roupa que retrate o racismo, sem qualquer tom crítico. Fico imaginando se, ao longo de todas as etapas de produção desta coleção, não haveria uma pessoa que tenha se sentido, ao menos, incomodada com a cena. Não houve ninguém que falasse que racismo não é moda? Triste. Quem trabalha com moda sabe que um vestido é mais do que um vestido: ela quer passar uma mensagem, marcar uma presença, dizer algo.

Imagino, porém, a grife não tinha intenção de ser racista. Ah, o diabo nessa hora agradece a casa cheia… A coleção da Maria Filó entra na lista de coisas que fazemos sem perceber. Está tudo tão entranhado em nossa cultura que não nos damos conta do quão racista nossa sociedade é. A ponto de produzir uma roupa que ilustra um dos piores momentos históricos do país, a ponto de alguém comprá-la. Fico imaginando se o Chile criaria uma peça que lembrasse da ditadura ou se a Alemanha saísse por ai fazendo peças com as suásticas. Não tem racismo-gourmet. A escravidão matou milhões de indivíduos, explorou outros milhões e trouxe – e traz – consequências até os dias de hoje.
Mas, pasmem, se confirmada a hipótese da pesquisadora e artista Patricia Gouvêa, o pecado da Maria Filó foi ainda maior. “Chega mais”, vibra o coisa ruim. A imagem não teria sido inspirada numa pintura do francês Jean Baptiste Debret, conforme dito pela loja em sua defesa. Seria uma reprodução da litografia “Negras no Rio de Janeiro”, de autoria de Johann Moritz Rugendas, de 1835. Enquanto que, no original, há duas mulheres negras em cena,  a loja colocou como branca a mulher que estava sentada, dando novo significado à cena.
Polêmicas à parte, o fato é que fazemos, a gosto do sete pele, as coisas sem querer. E sem querer, vamos reafirmando valores e crenças que deveríamos querer apagar da memória – e não eternizá-los. Assim acontece com os negros diariamente. Afinal, a sociedade não é racista, mas ainda ri de piadas de negros. Não é racista, mas apenas 5% dos cargos de chefia, hoje, nas empresas brasileiras são ocupados por negros, segundo o Instituto Ethos. Não é racista, mas cadê os médicos negros no Copa Dor? Não é racista, mas, mas, mas tantas histórias que o Facebook nos conta a cada instante.
Se servir de consolo, há outras vítimas, digamos assim. E é ai que entram as pessoas com deficiência, alvos constantes de gestos sem intenção de ferir.  É, sem intenção, mas, cada vez que uma família que tenha alguém com algum déficit intelectual ouve um “retardado”, ela se sente agredida. A cada, “coitadinho”, “peninha”, “ai que dó”, é entreouvido por aí, dói no tímpano e no coração. Tem gente que sente dor até com ‘portador’ e ‘deficiente’, mas, tudo bem, a gente precisa ficar mais calejado também…  A cada prova que chega para a turma e não chega para o aluno em situação de inclusão, a cada atividade que a turma faz e um fica de fora, a cada passeio que exclui um estudante por um motivo tido como “justo” ou “nobre”, é como a estampa da Maria Filó. É um tapa na cara sem intenção de machucar. E o diabo se diverte.
Só há um jeito de sairmos desse inferno. Deixemos as boas intenções de lado. Ninguém precisa delas. Já que o bom senso não é universal, apelemos para empatia – nome em moda para o bom e velho ‘se colocar do outro’. Um exercício diário que vai nos impedir de desenhar, produzir e mesmo comprar estampas racistas. Bem como nos impedirá de olhar com piedade para alunos em situação de inclusão. Mas vai nos fazer olhar para cada um de nós com o merecido respeito.

Fabiana Ribeiro
fabiana.ribeiro@paratodos.net.br


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