Corrida para os computadores

Corrida para os computadores.

Corrida para os computadores

A aula era de jornalismo, mas a professora fala por uma eternidade que um dos valores que mais importa para qualquer profissão é a ética. E o respeito ao outro. E a empatia. E o pensamento coletivo em detrimento ao individual. Todos valores fundamentais para ela, que também tem a inclusão de pessoas com deficiência como valor de vida –  e, mais recentemente, de sala de aula.
Para comprovar sua teoria, a moça dá exemplos concretos. Critica colegas de profissão que já roubaram caderninhos de apuração. Não apoia jornalistas que entregam suas fontes. Admite já ter perdido um furo, mas jamais abriu mão de seus valores – como pensar no efeito de suas palavras sobre o outro. Tudo lindo.
Mas nem sempre teremos grandes dilemas éticos para serem enfrentados. Poucos terão de decidir entre ouvir o outro lado e receber dois milhões de dólares. A vida é, digamos, mais banal. E os exemplos do cuidado com o outro saem dali mesmo, desse microcosmos tão pequeno quanto rico. Chegamos ao causo do dia.
No meio dos 10 alunos (e adolescentes), há uma aluna de braço direito enfaixado. Deve ter torcido o pulso ou fraturado algum ossinho. Cuidadosa, a professora lhe pergunta se a moça precisa de algum apoio para escrever, a que ela responde: “Eu consigo escrever”. A professora entendera, por razões não ditas, que a aluna era canhota. Em seguida, a turma fora direcionada para uma sala onde assistiriam a um vídeo sobre o qual escreveriam uma matéria. Anotar era uma das recomendações dada pela professora.
De volta à sala original, era hora de os jovens escreverem seus respectivos textos. Havia três computadores disponíveis para o grupo e a professora disse apenas: “Organizem-se para ver quem vai usar as máquinas da sala, Os demais escrevam à mão mesmo”. Foi dada à largada.
Farinha pouca, meu pirão é primeiro.
Os três mais ágeis ganharam os computadores. E a mocinha do braço enfaixado ficou para trás. A professora não percebeu o deslize da turma. Tampouco se deu conta de sua própria negligência.
Logo ela.
Rainha da inclusão.
Dona da ética.
Fada do bem.
Mas tem um momento em que a ficha cai. Especialmente quando o trabalho recebido traz letras trêmulas como se escrito durante um terremoto. É nessa hora que você pode optar por fingir que não viu ou resolver os erros de minutos atrás. E foi mais ou menos assim que começou o sermão:
– Turma, hoje aconteceu algo em que nós, como grupo, falhamos. Erramos feio. Erramos com nossa colega que está com braço enfaixado. Devemos desculpas para ela. Eu devo. Com seu braço enfaixado, o certo seria você ter direito a um dos computadores e o restante da turma que se entendesse com os dois demais. Mas isso não aconteceu. Em vez disso, uma corrida individual para ver quem ficava com os poucos computadores a que temos direito. Ao pensarmos em nós, esquecemos do outro. E isso, nessa turma, com esse grupo, precisa ser inadmissível. A ética também está nos detalhes das nossas relações com o outro. Falhamos num simples exercício da inclusão.
Imediatamente, os rostos acusaram seu próprio erro, seu egoísmo. E não de apenas de quem fora mais rápido, mas de todos que também tiveram a mesma intenção de ganhar a corrida dos computadores. Uma pequena onda de desculpas chegou até a menina. Lindo.
E a professora? Bem, a tal professora é a mãe que vos fala. Como toda mãe, não perco a oportunidade para passar algo de bom aos meus filhos. Foi assim que o episódio virou assunto da pizza do fim de semana. Mas essa história toda ainda deixou uma pergunta no ar: será que meus filhos tentariam liderar a corrida dos computadores? Juraram que não. Será mesmo? A saber.


FABIANA RIBEIRO é jornalista e co-fundadora do Movimento Paratodos que visa a promover a inclusão das pessoas com deficiência. É mãe corujíssima de Pedro, 10 anos, e Vitor, 8 – dois meninos que, a cada dia, a desafiam a querer ser uma pessoa melhor. Quer escrever para ela? Mande um e-mail para: fabiana.ribeiro@paratodos.net.br
Fabiana Ribeiro
fabiana.ribeiro@paratodos.net.br


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