​Onde erramos com John?

Inclusão se aprende em casa.

​Onde erramos com John?

Lá estava a família ao mar. Mãe-pai-filho. Em todo canto, a mãe e o pai se revezavam nos cuidados com o menino. Era evidente que ele tinha alguma questão comportamental. A fala era feita com esforço, os movimentos se repetiam constantemente, as demais crianças não lhe interessavam. Os pais, carinhosos e suaves, não desgrudavam no garoto um só instante. Atentos a todos os seus movimentos e reações, estavam sempre olhando ao redor, como se tentassem evitar algum desastre. Na sombra do zelo, lá estava o menino que se divertia naquele passeio maluco: com piscinas lotadas, barulho de música, crianças correndo atrás de sorvete. E pose pra foto. Dessa vez, o Facebook não nos enganava: os sorrisos eram reais. 

Alguns dias se passaram dentro do navio até que descobri que o menino, John, era mais um americano entre tantos com autismo. A viagem havia sido planejada há meses pela família. E ele já sabia que seriam dias intensos, mas de folga – o que aceitou surpreendentemente muito bem. Pela manhã, participava, com pontualidade, das atividades oferecidas às crianças do cruzeiro. “Lembra a escola”, comentou a mãe. Então, chega a hora do almoço, um momento tenso. John tem alergia a uma série de alimentos. Não há uma explicação plausível. É ir testando e mudando, explica a mãe. Na prática, são poucos os alimentos que não lhe irritam o estômago ou o humor. Uma lista de alimentos foi passada com antecedência ao cruzeiro para que pudessem se preparar para receber John. Entretanto, como a tal lista deve ter ficado em terra, o improviso deu lugar à perfeição: as refeições eram preparadas na hora e, separadamente, para o menino. De tarde, John ficava na piscina. E, com horários programados para pintar, fazer fantasias e mergulhar, John se divertia à beça. A quebra de rotina vinha quando o navio atracava, o que o menino gostava, pois ele se encantou pelo mar.
Ao terminar o passeio, organizado para a semana em que a escola não funciona por causa das temperaturas muito baixas e da neve intensa, John volta às aulas. Ele estuda numa escola pública regular que lhe dá apoio fonoaudiológico e psicopedagógico no contra-turno. A família acha pouco e, com o plano de saúde, complementa as sessões dadas pela escola. Em sala, uma mediadora (o cargo oficial é Professor Assistente de Educação Especial) que acompanha John e os demais alunos com necessidades específicas. Ele tem alguns poucos amigos, a maioria é aluno em situação de inclusão, mas não dá para dizer que vive excluído de festinhas e passeios. No colégio, ele não é único: pela legislação local, os estudantes em situação de inclusão podem representar até 49% dos alunos da turma. Na conversa, eu me espantei com o “até”. A mãe, uma canadense que se apaixonou por um  americano, complementa: “se não, vira escola especial”. Claro, consenti.
O cenário contado pela mãe parecia o sonho de toda a família. Tudo parecia bem. O filho era bem atendido; os custos com as terapias estavam cobertos; a alimentação, cara, mas estava dando pra segurar; as férias corriam bem, o casamento ia bem, obrigada; Jack estava satisfeito. Mas, foi ali, à espera de fazer a foto do menino descendo pela centésima vez no tobogã, ela disse: “o que me faz sofrer não é o autismo do meu filho. o que me deixa triste, arrasada, é quando um professor me diz que meu filho não pode sair de sala, que isso é falta de disciplina. E isso mesmo ele tapando os ouvidos por estar nervoso. Fico inconformada quando a terapeuta me diz que, mesmo sendo a matemática o que ele mais gosta de fazer, ela não vai usar a matemática com ele nas atividades porque ele tem que aprender que nem tudo é do jeito que ele quer. O que me deixa inconsolável é quando alguém me diz que meu filho não vai aprender isso ou aquilo e, se aprender, pra quê mesmo? O que me deixa triste é essa inabilidade, é essa falta de empatia, é essa técnica toda no lugar de olhar o outro. Inclusão não é saber, não é conhecimento. Inclusão tem a ver com tornar possível o aprendizado. E isso não tem lei, não tem diretora de escola, que ensine ao professor. E isso se aprende em casa”.
“Isso se aprende em casa”. Impossível não voltar pra casa com essa frase na cabeça. Vontade de dividir essa angustia dessa mãe e essa responsabilidade com quem não tem diretamente nada a ver com isso. Afinal, o que estamos fazendo em casa, com nossos filhos, para que, quando adultos, sejam profissionais – professores, padeiros, médicos, mecânicos, arquitetos, desenhistas, empreendedores – capazes de se colocar no lugar do outro? Onde erramos com John?

 

Fabiana Ribeiro
fabiana.ribeiro@paratodos.net.br


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